terça-feira, 25 de agosto de 2009

MEMÓRIAS DA LUTA PELA TERRA NO ASSENTAMENTO BELA VISTA, MUNICÍPIO DE JAGUARUANA-CEARÁ

Francisco Antonio da Silva[1]
1. Introdução/Justificativa

Em maio de 1996 o município de Jaguaruana, localizado na Região do Baixo Jaguaribe, Estado do Ceará, foi palco de uma das maiores manifestações de trabalhadores rurais na luta pelo direito a terra. Cerca de 200 (duzentas) famílias ocuparam na noite de 24 de maio uma grande propriedade rural, conhecida como JOBRASA – Jojoba do Brasil S.A. – grande produtora e exportadora de frutas tropicais, que havia decretado falência já havia uns dez anos.
A ocupação da fazenda JOBRASA representou uma mudança de atitude dos camponeses em relação aos proprietários de terras e autoridades do município de Jaguaruana que por muitos séculos reinaram absoluto em suas propriedades como verdadeiros “coronéis” e senhores de escravos.
Os camponeses, muitos deles vivendo na periferia da cidade, começarem a se organizar cerca de três meses antes a partir da intervenção do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Na noite em que foi realizada a ocupação saíram todos da periferia da cidade, no Bairro Alto, onde foi feita a concentração. Na caminhada passaram pelo Bairro Tabuleiro e a 1,5 Km depois atravessaram o rio Jaguaribe, no trecho denominado Rio Serafim, passando em seguida pela comunidade de Carnaubal, à sua margem direita. Após uma caminhada de mais 1,5 km chegaram aos portões da fazenda, que se encontrava trancado à corrente e cadeado. Houve um momento de indecisão, alguns camponeses abandonaram o grupo temendo a repressão policial e a reação dos proprietários de terras e gado da região que utilizavam a fazenda para pastagem[1].
A chibanca[2], ferramenta de trabalho que faz parte do dia-a-dia do homem do campo, empunhada por uma mão firme, desferiu o golpe que fez voar pelos ares corrente e cadeado juntamente com as partículas luminosas resultantes do atrito. As partículas de fogo que concorreram com a luz da lua e das estrelas acenderam as esperanças daqueles que estavam do lado de fora da fazenda. A cerca e a porteira, instituições delimitadoras da propriedade privada, representam a divisão do mundo entre os proprietários e não-proprietários. Além de ser uma barreira material a cerca e a porteira funcionam, no plano simbólico e das representações, como um entrave psicológico. Numa sociedade na qual a posse da terra teve um papel central na definição da dinâmica de classes e na estruturação do campo econômico, naturalizar a situação dos despossuídos foi uma condição essencial para o não questionamento das desigualdades sociais.
Os movimentos sociais do campo que lutam pelo direito ao acesso a terra representam para os camponeses a possibilidade de questionamento da estrutura fundiária do país, com propostas de reforma agrária que superam as políticas restritas de assentamento e colonização promovidas pelo Estado. A reforma agrária defendida pelos movimentos sociais não é contrária ao desenvolvimento da agricultura camponesa, pelo contrário, a reforça. As elites políticas e econômicas, dentre elas os grandes proprietários rurais ou latifundiários, defendem a tese de que a agricultura camponesa é inviável, representando atraso e prejuízo para a economia nacional e a solução seria a agricultura capitalista, porque é técnica e financeiramente viável. Com base neste discurso os grandes proprietários se beneficiam dos créditos públicos e incentivos fiscais enquanto o campesinato fica excluído das políticas públicas para o campo. A saída apontada pelo Estado, organismos internacionais e intelectuais representantes das elites econômicas seria a reforma agrária de mercado e a agricultura familiar empresarial[3]. De acordo com um consultor do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em pesquisa a respeito da situação da reforma agrária e sua relação com a economia globalizada, na qual analisa o nível de renda dos assentados em projetos de Reforma Agrária,

"(...) a mesma situação em termos de renda não se registra em todas as regiões do país. O caso analisado no Nordeste revela a impossibilidade de estruturar um setor consolidado nas condições de clima e solos do semi-árido nordestino. Nenhum agricultor atingiu esse nível, e a grande maioria sobrevive em função do apoio constante de algumas ONG’s e entidades de apoio. Isto não desqualifica o esforço realizado pelos agricultores e suas organizações no sentido de estruturar sistemas de produção com espécies adaptadas à seca, caprinocultura, obras de irrigação, etc. Conseguem, assim, coexistir com a seca e sobreviver a suas conseqüências mais nefastas. Mas os altos custos e as dificuldades crônicas dos sistemas desse tipo não justificam uma política voltada para a expansão da agricultura familiar nessa região, como pode ser o caso da reforma agrária" (GUANZIROLI, 1998).

A conclusão obvia deste estudo é de que em regiões como o Nordeste o agronegócio é a única alternativa viável, pois a pequena propriedade e os projetos de Assentamento de Reforma Agrária representariam entraves ao desenvolvimento da região, devido às condições de clima e solos. Essas contradições, no entanto, podem ser percebidas pelos observadores mais desatentos, pois os grandes projetos agroindustriais se espalham por todos os lugares. O Projeto Jaguaribe Apodi, que envolve os municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré, e o Projeto Tabuleiros de Russas, envolvendo os municípios de Russas, Morada Nova e Limoeiro do Norte, representam apenas uma pequena demonstração da apropriação das terras férteis e dos recursos hídricos por grandes empresários.
O agronegócio, um nome novo para designar um velho conhecido, o latifúndio, é a saída encontrada pelo Estado para a reprodução da estrutura agrária do país, garantindo aos grandes proprietários, a inviolabilidade da grande propriedade, e ao mesmo tempo mão-de-obra barata, tornando possível a existência de milhares de trabalhadores que vendem sua força de trabalho em condições precárias.
A ocupação da fazenda JOBRASA representou um salto de qualidade para os camponeses do município de Jaguaruana. De acordo com o GETRAM – Grupo de Estudo e Trabalho para Melhoria e Revitalização do Assentamento Bela Vista,
"Para a grande maioria dos que participaram da ocupação da fazenda essa foi uma experiência inesquecível, pois pela primeira vez na vida se sentiram sujeitos da história, responsáveis por seus destinos. A experiência mais próxima pela qual quase todos haviam enfrentado foram os saques ou tentativas de saques ao comércio local nos períodos de seca. A diferença estava no fato que no saque a “multidão” é movida pela fome, enquanto na ocupação de terras há um caráter político mais evidente, até porque foi o MST que organizou os trabalhadores durante meses para aquela ação.
Durante a ocupação da terra e o estabelecimento do acampamento os camponeses passaram por uma experiência de trabalho coletivo, coisa muito diferente da ajuda mútua que caracteriza a rotina de trabalho e organização da produção do campesinato brasileiro.
A organização e o exercício da política foi outra variável que diferenciou o Assentamento Bela Vista de outras comunidades e organizações sociais, pois existiu por muitos anos uma democracia direta a partir da qual os assentados discutiam seus problemas e decidiam os destinos da comunidade através da participação e respeito às decisões da maioria" (GETRAM, 2008, p. 4).

A ocupação resultou na desapropriação da terra pelo governo federal e na constituição do P.A. Bela Vista, com 174 famílias assentadas. O Assentamento Bela Vista é constituído por duas agrovilas[4]: a principal, com 154 famílias, localiza-se no início da Chapada do Apodi; a outra, com 20 famílias, estar situada no local onde funcionava o escritório central da empresa, por isso é conhecida como “sede”. Duas associações representam os assentados: a mais antiga, a Associação dos Assentados do Assentamento Bela Vista e a Associação Cooperativista Nova Vida, fundada há cinco anos. Desde o final de 2008, com a intenção de contribuir com a organização do assentamento, um grupo de assentados e assentadas e seus filhos vêm se reunindo para criar um grupo, denominado GETRAM – Grupo de Estudo e Trabalho para a Melhoria do Assentamento Bela Vista – que tem como objetivo “trabalhar para a melhoria e revitalização do Assentamento Bela Vista, com o intuito de refletir a respeito dos problemas e dificuldades vivenciadas pelos assentados, na tentativa de ampliar as condições da comunidade e o desenvolvimento da agricultura camponesa” (GETRAM, op. cit., p. 5).
Desde a ocupação, passando pelo processo de acampamento e assentamento já se passaram quase 13 (treze) anos. Durante este período os assentados passaram por diversas experiências, marcando profundamente a existência destes camponeses e a forma como vêem a si mesmos e o mundo. Pois,

"Enfim, um assentamento que resulta de programa de reforma agrária não se restringe à dimensão econômica, pois ele se caracteriza por ser um espaço de vida, um território socialmente ocupado no dizer do grande geógrafo Milton Santos, onde as pessoas partilham suas vidas, crenças e valores. O assentamento é a expressão concreta de uma nova organização social, sendo que o espaço socialmente construído e conquistado deve refletir as condições objetivas e subjetivas para o desenvolvimento integral, ou seja, os assentados devem dar um salto de qualidade nos aspectos sócio-econômicos, políticos, educacionais, culturais, etc." (Idem, op. cit., p. 5).

É esta experiência, o viver em um assentamento de reforma agrária e o processo de ocupação, resistência e reprodução material da existência, a temática deste projeto de pesquisa. Pretende-se compreender o processo de construção do Assentamento Bela Vista, a luta pela terra, através das experiências individuais e coletivas vivenciadas pelos assentados.
A pesquisa justifica-se pela necessidade de se compreender de forma mais ampla a luta pela terra em Jaguaruana, tendo em vista que a ocupação da fazenda Jobrasa não foi um fato isolado na história das ocupações neste município. Além do Assentamento Bela Vista, há no seu entorno mais cinco assentamentos e acampamento: Assentamento Serra Dantas, Bernardo Marinho I e Bernardo Marinho II, Campos Verdes e Boi Gordo. O acampamento Bom Jesus, localizado ao lado do Assentamento Bela Vista, já teve o decreto de desapropriação da terra assinado pelo governo federal.
Como se pode observar pela dimensão da questão, a temática necessita ser melhor compreendida e exige a realização de estudos mais amplos. Por ora, esta pesquisa pretende iniciar a reflexão a respeito. Esperamos poder aprofundar o tema em outro esforço de pesquisa[5].

2. Problemática da Pesquisa

A estrutura fundiária tem sido um dos problemas mais duradouros da história do Brasil, deitando suas raízes no processo de colonização que teve na posse da terra e da mão-de-obra escrava indígena e africana os pilares de construção e sustentação do sistema colonial português na América. São quinhentos anos de história que serviram para aperfeiçoar os mecanismos e instrumentos de posse, controle e concentração da terra nas mãos de um reduzido número de proprietários.
Todas as tentativas de ocupação da terra por nativos, escravos e camponeses foram sufocadas e aniquiladas. Os territórios indígenas foram reduzidos a aldeamentos ou missões religiosas; os quilombolas foram perseguidos e destruídos, sendo o mais conhecido o Quilombo dos Palmares; as comunidades camponesas como Canudos, Contestado e Caldeirão foram aniquiladas pelo exército brasileiro.
A história das lutas camponesas traz em seu itinerário um rastro de sangue e massacres promovido pelo Estado e pelos proprietários rurais, que punem aqueles que questionam a dominação com o extermínio e a criminalização. Os acontecimentos recentes que são estampados diariamente na mídia, como assassinatos de camponeses e suas lideranças, demonstram o quão longe está o caminho para a solução da “questão agrária”.
Uma das formas de apagar da memória histórica[6] as lutas camponesas no Brasil é a desqualificação das revoltas e rebeliões que tiveram como protagonistas camponeses e escravos ou, por outro, a afirmação de que o povo brasileiro é pacífico. A tese da democracia racial também tem contribuído para camuflar a dominação de classes, pois segundo esta perspectiva a formação da sociedade brasileira é o resultado da miscigenação de três raças: o branco, o negro e o índio. Sem negar a importância que tiveram os contatos inter-raciais no Brasil, não podemos menosprezar o papel que tiveram as condições materiais da existência na estruturação e dinâmica das relações sociais no Brasil.
A visão de uma sociedade pacífica funciona como estratégia para o não questionamento do status quo e das estruturas de poder, frutos de um projeto hegemônico de dominação de uma classe ou fração de classe sobre uma determinada sociedade. Quando classes ou categorias sociais questionam os fundamentos da dominação de classe, como no caso das lutas camponesas a propriedade da terra ou o latifúndio, os detentores do poder (político, econômico, educacional, etc.) acusam-nas de baderneiras, pois estão rompendo com os princípios da paz social.
E neste cenário que envolve relações conflituosas, cujos fundamentos são as condições materiais da existência, surgem os mecanismos e os instrumentos que favorecem ou contribuem para a continuidade da reprodução da dominação no tempo e espaços, fazendo com que a dominação e a exclusão sejam naturalizadas, minimizando os riscos de questionamento por parte dos excluídos.
A dominação econômica não se estabelece sem um aparato ideológico que justifique e naturalize as diferenças sócio-econômicas, políticas e culturais. Assim, é necessário ter uma compreensão dos esquemas cognitivos e representações sociais que orientam o comportamento, as ações e atitudes dos sujeitos nos diversos campos sociais que constituem uma determinada sociedade (BOURDIEU, 1985, 1989, 1996a, 1996b).
Neste sentido, toda tentativa de alteração das relações sociais e de dominação tem que enfrentar os “esquemas cognitivos construídos” por diversas gerações e, às vezes, por séculos de história. Assim, os movimentos sociais têm que, além de organizar os sujeitos em torno de uma bandeira de lutas ou reivindicações, construir um projeto político-ideológico que se contraponha e concorra com o projeto político-ideológico dominante. No caso dos movimentos que questionam a ordem estabelecida, esse projeto se manifesta mais explicitamente em lemas e slogans que aglutinam reivindicações e sentimentos, dando-lhes unidade, coesão e coerência discursivas. A história da formação do MST evidencia claramente esta assertiva, pois no Encontro Nacional, realizado a cada dois anos, e no Congresso Nacional, são definidos lemas e palavras de ordem que dão as coordenadas do movimento durante um determinado período. O 5º Encontro Nacional realizado em 1989, por exemplo, definiu como lema as seguintes palavras de ordem, ocupar, resistir e produzir, que orientou as ações do movimento na primeira metade da década seguinte. Quando houve a ocupação da fazenda Jobrasa estas ainda eram as palavras de ordem que foram entoadas por centenas de camponeses por todo o período de construção do Assentamento Bela Vista (a ocupação, a resistência e a organização da produção).
A partir da discussão precedente podemos expressar a problemática da pesquisa nos seguintes termos: sem desprezar os valores e práticas historicamente construídos pelos camponeses, pois eles não são abolidos no processo de luta e conquista da terra, como esses sujeitos se comportam e agem diante dessa nova relação com a terra e sua propriedade? Em outras palavras, que expectativas se abrem aos camponeses e como eles as enfrentam? Quais as mudanças e as permanências nas condições de vida dos camponeses? Que mudanças se operam nas representações sociais a respeito da terra e da organização dos camponeses?
Essas são algumas das questões que esta pesquisa pretende desvendar e ao respondê-las tornar possível a compreensão do processo de ocupação da terra, a resistência dos camponeses e a construção do Assentamento Bela Vista.

3. Objetivos

3.1 Objetivo Geral

Reconstituir a trajetória da luta pela terra dos assentados do Assentamento Bela Vista, no município de Jaguaruana – Ceará, tentando compreender a dinâmica e modo de vida da comunidade e as possibilidades e expectativas criadas pela posse da terra e a compreensão que eles têm desta nova realidade.

3.2 Objetivos Específicos

a) Refletir a respeito das experiências de ocupação da terra, a resistência e produção da vida vivenciadas pelos assentados;
b) Analisar o processo e as instâncias de tomadas de decisões no assentamento;
c) Refletir a respeito da relação entre as assentados e suas lideranças;
d) Compreender a relação entre o assentamento, os poderes públicos (municipal, estadual e federal) e movimentos sociais como o MST;
e) Analisar os processos de gestão financeira do assentamento;

4. O Campesinato, a Luta pela Terra e a Reforma Agrária: Um diálogo Interdisciplinar

A Revolução Industrial iniciada na Inglaterra no final do século XVIII exigiu transformações profundas no campo, pois a agricultura, ao contrário do que muitos pensam, desempenhou um papel importante na estruturação do modo de produção capitalista ocidental moderno. Para que a industrialização se completasse, ou seja, a produção de mercadorias em larga escala a partir de uma divisão social do trabalho até então inimaginável, a agricultura teve de ser modernizada. Em outras palavras, a agricultura camponesa teve de ser transformada em agricultura capitalista. Essa mudança atendeu a duas demandas: criar um exército excedente de mão-de-obra nas cidades que garantisse a baixa dos salários e, por outro lado, produzir alimentos numa proporção que garantisse a sobrevivência de um contingente cada vez maior de trabalhadores que foram obrigados a migrarem para as cidades industriais (HOBSBAWM, 2003).
Tomando a Europa Ocidental como referência historiadores como Eric Hobsbawm previram o fim do campesinato, pois os avanços das relações capitalistas no campo destruiriam as relações de produção campesina, ou seja, a única condição de sobrevivência no campo seria a integração ao mercado. Assim, elementos centrais da economia camponesa com a produção para o autoconsumo e emprego da força de trabalho familiar seriam substituídos pela produção para o mercado e emprego do trabalho assalariado que marcariam as novas relações. Uma mudança importante nesse processo seria o declínio da policultura, tendo em vista que o plantio de algumas culturas não atenderiam a relação custo-benefício própria das leis de mercado. Ainda, como a maioria da esquerda e dos intelectuais marxistas ocidentais acreditava que o proletariado (os operários) é a classe responsável pela revolução socialista, consideravam a destruição do campesinato como uma condição essencial para as transformações burguesas no campo.
No entanto, se observarmos a questão agrária fora da Europa Ocidental teremos outra perspectiva do problema: longe de ser destruído o campesinato passa por um processo de recriação constante, obrigando-nos a compreendê-lo como uma categoria ou classe social que tende a reproduzir-se no tempo e nos espaços os mais diversos possíveis. As lutas desenvolvidas recentemente por diversos movimentos sociais camponeses, como o MST, demonstram a capacidade organizativa e de pressão desta classe social. Mas afinal de contas, o que é o campesinato? Quais as condições de sua existência? O que o diferencia de outras categorias sociais que têm o campo como locus da existência e sobrevivência? Para o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes[7],

"Campesinato é um dos conceitos mais difíceis de explicar. Diferentemente dos trabalhadores assalariados ou dos empresários capitalistas que produzem e se reproduzem a partir unicamente da relação trabalho-capital em todos os lugares, o campesinato cria e se recria por meio da relação familiar e do assalariamento temporário. Para melhor compreender esta dificuldade é preciso entender a complexidade em que o campesinato está envolvido. O campesinato só pode ser compreendido no processo da multidimensionalidade, ou seja, na interação de todas as dimensões do desenvolvimento humano: política, economia, sociedade, natureza e cultura. O trabalho na terra e a produção de alimentos são relações principais que identificam os diferentes tipos de campesinato em qualquer parte do mundo" (FERNANDES, p.12).

Para o autor o campesinato é diferente na maior parte das regiões do mundo e tem na diversidade cultural e econômica uma das suas principais riquezas. Essas diferenças e semelhanças estão representadas nos diversos conceitos utilizados para falar do campesinato: pequeno agricultor, lavrador, agricultor familiar, campesinato indígena, pequeno produtor, agricultura familiar camponesa, produtor familiar etc. Essas diferenças referem-se às múltiplas relações sociais em que os camponeses estão envolvidos. Na dimensão econômica, podem-se encontrar diversas situações que, algumas vezes, acontecem ao mesmo tempo. Para ele,
"No conjunto de diferenças encontram-se muitas semelhanças. Algumas características comuns dos camponeses são: a organização do trabalho e da produção familiar e ou em comunidades; as diversas formas de uso da terra para produção de alimentos; a organização de cooperativas para os diferentes tipos de trabalho e dimensões do desenvolvimento; produção em pequena escala e criação de tecnologias apropriadas na relação com o espaço natural; a policultura, a participação intensiva nos mercados locais e a produção de autoconsumo; a subordinação aos processos produtivos determinados pela agroindústria e as expressivas participações na produção para exportação. Pela própria estrutura da organização familiar e ou comunitária camponesa e indígena, a produção e a criação camponesas obedecem ao tempo natural do limite humano" (Idem, ibdem, p. 12).

Contrariando as interpretações que defendem o fim do campesinato a realidade da estrutura fundiária do país e as lutas desenvolvidas por determinados movimentos sociais demonstram a complexidade do fenômeno, que se cria e recria-se mesmo sob as condições capitalistas de produção. Ainda segundo Bernardo Fernandes,
"O campesinato é uma das organizações sociais mais antigas da história da humanidade. Participou da construção de diferentes tipos de sociedades, bem como participou das transformações políticas das sociedades modernas. Essa qualidade é constituída na resistência do campesinato à exploração e à expropriação. A luta pela terra e pelo território são outras relações de semelhança entre os diferentes tipos de campesinato. A expropriação pelas desigualdades produzidas no desenvolvimento capitalista e a ressocialização gerada na luta camponesa pela terra são situações que expressam a complexidade das semelhanças e das diferenças do campesinato" (p. 12-3).

Christiane Campos destaca outra característica do campesinato que nos ajuda a entender sua persistência nas sociedades capitalistas modernas. Para a autora,

"O campesinato não é nem burguês nem assalariado, mas contém elementos das duas classes: posse e/ou propriedade dos meios de produção e exploração de força de trabalho. Também não pode ser entendida como a síntese das duas classes, porque historicamente é anterior a elas, o proletariado é que surge a partir de transformações do campesinato nas formações sociais capitalistas" (CAMPOS, 2006, p. 146).

Desta forma, compreende-se que, mesmo em sociedades capitalistas, a análise da luta de classes no campo é mais complexa, por faltar a dicotomia clássica que opõe burgueses e assalariados. A própria forma de recriação do campesinato complica ainda mais a percepção do conflito de classes. Essa classe social recria-se de três formas: arrendamento, compra e ocupação da terra. Esta última forma de recriação apresenta um conteúdo de classe mais evidente, pois no processo de organização os camponeses vivenciam o processo de construção, fazendo-se na luta como afirma Thompson (1987). Nesse processo de organização acontece uma transformação importante, os camponeses quebram as barreiras de seu isolamento, espacializando sua luta em um movimento chamado por Fernandes (2001) de espacialização e territorialização dos movimentos sociais e lutas camponesas.

5. Metodologia

Os procedimentos metodológicos podem ser descritos em três categorias: observação direta, realização de entrevistas e análise documental. Esses três momentos da realização da pesquisa, muitas vezes, ocorrerão paralelamente e nem sempre seguirão a ordem aqui apresentada.
A técnica da observação direta, embora possibilite a coleta de dados e informações de grande valor para o trabalho, exige uma grande vigilância por parte do pesquisador, tendo em vista que o contato cotidiano com a comunidade possibilita a construção de uma certa visão normativa do mundo dos camponeses[8]. Nesse sentido, será necessário observar o metier do etnógrafo possibilitando que “as diferentes formas de interpretações da vida, formas de compreensão do senso comum, significados variados atribuídos pelos participantes às suas experiências e vivências” (André, 1995:20) sejam compreendidos e tomados como matéria-prima para a análise. Assim, os esquemas de classificação e interpretação do mundo utilizados pelos sujeitos pesquisados serão a matéria bruta sobre a qual a análise recairá, pois as ações e comportamentos revelam a relação dos indivíduos com o mundo e a natureza.
A realização de entrevistas será outro recurso metodológico de grande valor para a pesquisa. Serão realizadas entrevistas com lideranças do assentamento, técnicos, representantes do MST e funcionários do INCRA-Ce. Também será entrevistada parte dos assentados que estão no assentamento desde a ocupação da terra. Utilizaremos o método das entrevistas narrativas ou narrativas de histórias de vida, que é uma forma de analisar momentos históricos, grupos sociais, subculturas e comunidades (BAUER & GASKEL, 2004 Apud FLORA, 2007). Segundo Ângela Della Flora “Esse método permite que os atores mostrem suas concepções a partir de uma realidade mais ampla, podendo fazer surgir nas entrevistas minúcias que permitem ampliar as possibilidades de investigação à medida que o diálogo se torna mais sistematizado” (op. cit., p. 09).
Quanto à análise documental nos deteremos nos documentos das duas associações do assentamento, em especial as atas de reuniões e assembléias.

6. Cronograma



7. Orçamento

Quadro 1: Despesas com Equipamentos e Recursos Humanos



Quadro 2: Despesas com Hospedagem, Passagens e Alimentação



Notas

[1] Professor Assistente do Curso de História da FAFIDAM/UECE. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.
[2] Grandes proprietários do município passaram a utilizar as pastagens da fazenda, após a falência da Jobrasa, para criação de gado, sem a autorização de nenhum órgão do Estado. Por isso, eles consideravam-na produtiva e por esse motivo temeram e repudiaram a presença dos “sem-terra” na propriedade.
[3] Uma ferramenta de trabalho utilizada pelos camponeses para a destoca, o processo de arrancar o toco e as raízes das árvores depois que é feito a broca e a queimada. A chibanca é a combinação de dois outros instrumentos de trabalho: numa extremidade há uma espécie de machado e na outra uma pequena enxada.
[4] Estas questões serão desenvolvidas mais adiante. É importante aqui perceber as diversas estratégias postas em prática para limitar a legitimidade das reivindicações dos camponeses e incentivar políticas que visam à destruição do campesinato, pois as propostas de agricultura familiar têm um forte componente empresarial que solapa as relações próprias da agricultura camponesa. Para saber mais a respeito desta temática ver as pesquisas desenvolvidas pelo NERA (Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária), ligado ao Departamento de Geografia da FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente. Consultar o site www.fct.unesp.br/nera, onde estão disponíveis diversos textos, artigos, boletins, relatórios sobre a questão da reforma agrária no país.
[5] As agrovilas são constituídas em um lote reservado para tal finalidade. Nelas são definidas diversas “regras sociais entre os moradores para garantir o clima social de amizade e fraternidade”. Uma agrovila “representa sobretudo a manutenção do sentido de coletividade que move os assentados desde os tempos dos acampamentos” (MORISSAWA, 2001, p. 227).
[6] O autor pretende dar continuidade ao estudo da problemática em sua pesquisa de doutorado, a partir de 2010.
[7] Para Eric Hobsbawm uma das constatações mais importantes que o historiador pode observar a respeito do século XX é a perca da memória histórica, fazendo com que tenhamos a impressão de que vivemos num eterno presente. Assim, a relação passado, presente e futuro, torna-se fluída e sem sentido, pois o sujeito imergido no presente constante perde a noção da temporalidade e isso faz com que também se perca a capacidade de compreender a realidade da vida cotidiana de forma mais profunda (ver HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995).
[8] Professor da Faculdade de Ciência e Tecnologia/UNESP, Campus de Presidente Prudente, membro do NERA – Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária. Pesquisador que tem diversos trabalhos publicados a respeito da Reforma Agrária e dos movimentos sociais que lutam pela terra no Brasil e na América Latina, entre eles destacam-se FERNANDES, Bernardo Mançano. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis, Editora Vozes, 2000; Fernandes, Bernardo Mançano. Questão Agrária. Pesquisa e MST. São Paulo: Cortez, 2001; FERNANDES, Bernardo Mançano. SILVA, Anderson Antonio. GIRARDI, Eduardo Paulon. Questões da Via Campesina. In Anais do VI Congresso Nacional de Geógrafos. Goiânia, Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2004; FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão Agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. In: Luta pela Terra, Reforma Agrária e Gestão de Conflitos no Brasil. Antônio Márcio Buainain (Editor). Editora da Unicamp, 2005; STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava Gente: la trajetória del MST y de la lucha por la tierra en el Brasil. 2ª. ed. Rosario: Ediciones América Libre, 2005. 192 p.
[9] Essa observação se deve ao fato de que o autor vive no Assentamento Bela Vista e tem sua trajetória marcada pela vida no campo. Filho de camponeses, seus pais, além de muitos tios e primos também são assentados neste projeto de Reforma Agrária.

8. Referências Bibliográficas

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BAUER, Martin W.; GASKEL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e
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